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Published janeiro 28, 2024

Devemos ser gratos a Deus pelos estudiosos que exercem seus dons na área do crítico textual. Já tenho comentado o trabalho de Erasmus; permita-me destacar uma curiosidade que se encontra em algumas traduções da Bíblia graças a um calvinista do século 16.

Em 1598, Teodoro de Beza vivia na Suíça e preparava seu próprio texto grego. Enquanto copiava Apocalipse capítulo 16, Beza fez uma pequena alteração no seu texto grego no versículo 5, trocando a palavra ὅσιος (o Santo) por ἐσόμενος (hás de ser), para que se lesse:

E ouvi o anjo das águas, que dizia: Justo és tu, ó Senhor, que és, e que eras, e hás de ser, porque julgaste estas coisas. (Apoc 16.5)

Ao invés de ler:

E ouvi o anjo das águas, que dizia: Justo és tu, que és e que eras, o Santo, porque julgaste estas coisas.

Este tipo de mudança é conhecida como “emenda conjectural’, pois a alteração não é sugerida por qualquer manuscrito grego[1. WHITE, James, The King James Only Controversy, Bethany House Publishers, p. 63]. Na margem, Beza anotou um pequeno comentário, explicando que trocou as palavras para que o texto se harmonizasse melhor com outros versículos em Apocalipse, como em 1:4 e 1:8 que fazem menção daquele que “é, e que era, e que há de vir“.

Beza diz: “[João] sempre usa os três termos juntos, então aqui com certeza deve dizer “hás de ser”, afinal, por que João deixaria este trecho de fora?”[2. “…he always uses the three closely together, therefore it is certainly “and shall be,” for why would he pass over it in this place?” Fonte: Nouum Sive Nouum Foedus Iesu Christi, 1589, citado na página bibleone.org]

Entretanto, das poucas cópias em grego que existem do livro de Apocalipse, nenhum deles contêm esta variação sugerida por Beza. Esta variação também não se encontra nos textos gregos de Erasmus ou Stephens (publicados antes da versão do Beza), e nem ainda na Vulgata, a Bíblia em Latim daquela época. As Bíblias do Wycliffe (1382) e Tyndale (1526) também dizem “O Santo”. Inclusive, os irmãos Elzevir, que em 1633 publicaram seu Textus Receptus, também não usaram a sugestão feita por Beza, e com razão. Simplesmente não há documentos gregos que apoiem esta variação. Por isso, a leitura fiel é aquela que se encontra na maioria das traduções de hoje:

E ouvi o anjo das águas dizer: Justo és tu, que és e que eras, o Santo, porque julgaste estas coisas;

Mas indo um pouco além:

Em 1611, os tradutores convocados pelo rei Tiago usaram os textos de Erasmus, Stephanus e Beza, entre outros, como base para publicarem a Bíblia King James (KJV). Por alguma razão, optaram por usar a variação de Beza. Séculos mais tarde, em 1895, F. H. A. Scrivener adicionaria tal variação feita por Beza ao Textus Receptus para que o texto grego harmonizasse-se com a KJV[3. http://www.bibleone.org/Article.aspx?channel=1&article=33]. É este Textus Receptus, atualizado por Scrivener, que é publicado e vendido na atualidade.

Ao traduzir o texto bíblico para o português, João Almeida fez uso do texto de Beza[4. A Bíblia no Brasil, n. 160, 1992, p. 14, disponível em http://www.vivos.com.br/185.htm], e assim sua variação foi incluída no primeiro Novo Testamento publicado em Português, em 1689. Ela é mantida na versão atual da Almeida Corregida e Fiel (ACF) ainda que as demais edições do texto de Almeida prefiram a leitura que condiz com os manuscritos gregos.

Alguns, por negarem a importância do trabalho crítico textual, podem se encontrar constrangidos perante esse caso curioso. Pois, se preferem a variação feita por Beza, oras, ele era crítico textual! Ou, se preferem a leitura mais histórica, que condiz com os manuscritos, então acabam de tomar uma decisão com base no método do crítico textual! Outros, talvez, dirão que Beza efetuou a troca das palavras gregas por fazer parte de uma conspiração secreta que negava a santidade de Cristo.

É bom destacar que nem Beza e nem Erasmus afirmavam ter publicado a última versão possível do texto bíblico. Viviam num eterno loop: coletar, estudar, escrever, publicar e revisar. Beza chegou a publicar nove edições do seu texto grego. Ambos dependeram do trabalho de outros; assim como tradutores futuros dependeram deles.

Hoje, nosso entendimento da Palavra é fortalecido graças aos dons linguísticos que Deus deu a homens que buscam transmitir as Sagradas Escrituras com fidelidade.